quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Milagre do Amor pelo Bisavô Paula

Numa das costumerias visitas dominicais à vovó Zaydi, matriarca do clã dos Paula, Tia Ângela me confirou a guarda de parte valiosa da memória da família. Um monte de papéis amarelados, cartas trocadas há quase cem anos atrás, jornais de bairro escritos à mão, algumas folhas dobradas, outras meio amassadas, todas com aquele aspecto de coisa velha. Entre isto, havia uma poesia, recitada por meu bisavô Antônio Francisco de Paula Júnior para o amor de sua vida, Marcionila Mendonça de Paula, no dia da comemoração de suas bodas de ouro. Diretamente de vinte e três de novembro de 1957.

Vou transcrevê-lo:

Milagre do Amor

Para o amor, taumaturgo, o passado é o presente...

.........................................................................................

Como te vejo moça, elegante e atraente!...

Que mimo e gentileza, é pura a simpatia

Que de teu rosto e corpo, eu sinto, se irradia.

Tua face rosada e teu cabelo loiro

são sempre o meu encanto e o meu rico tesoiro.

Teu olhar cintilante, encantador, fatal,

Que me atrai e seduz: meu luzente fanal...

Teu ondulante andar, gracioso e gentil...

Tens a mesma elegância e o primor do perfil.

Vivaz e alheio ao tempo - é presente e passado

O amor não envelhece e belo é o ente amado...

É tua alma de escol, teu coração bondoso,

Festival harmonia em meu peito amoroso.

Certo que não mudaste... e fitando-te agora

Vejo-te ainda e sempre como te vi outrora...

A meus olhos de esposo és a mesma mulher.

Minh'alma te ama, te estima e te quer!...

..............................................................

Tú a mesma frescura... Eu, sempre o mesmo ardor...

Insondável mistério!... Oh milagre do amor!...

No dia das nossas

Bôdas de Oiro 23/11/1957

O Velho: 81 anos, 4 meses e 23 dias.

A velha: 80 anos e 4 meses.

Quando li aquilo, estabeleci uma conexão através do espaço-tempo com meu bisavô.

E escrevi este texto em resposta.

o amor não é cego
o amor enxerga além do presente
por isso te vejo tão atraente
como aquela menina
sonhadora, linda, loira
que amo desde e para sempre

o amor não é surdo
e entende tudo o que eu digo
por isso quando sussurro
palavras de amor aos teus ouvidos
teu corpo me responde com um suave arrepio

para o amor, não há tempo
tudo acontece quando ou quanto quiser
em alguma cabeça de qualquer homem
no seio ou no ventre de uma mulher

o amor pode enrugar, esbranquecer, engordar,
se encher de pelanca, amolecer
ou simplesmente se esquecer
mas nunca morre: só muda de lugar
ou de endereço, modo, gênero, remetente
porque quem ama uma vez quer amar eternamente

o amor só envelhece mesmo
nos corações enfadados de bater
mas de repente se multiplica
no amor dos que acabaram de fazê-lo

firmado pelo pranto dos que acabam de nascer

esse amor, que corre em minhas artérias
e escorre em todos os sentidos para você
irradia em nosso corpo
toda vontade de viver

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Mulher

a vida escorre por entre suas pernas
envolta em sangue
delírios do amor e da guerra
e nasce
flui do enlace
óvulo esperma
ou seria
consentimenteosfera?
.
não importa
a vida simplesmente brota
feito semente
o feto é forjado humano
pelo calor intra- ventre
até a poda do elo umbilical
quando a vida floresce gente
para o bem ou para o caos
.
e por mais que pareça estranho
ou seja apenas normal
eu passei a vida inteira tentando
voltar àquele infinito profundo das mulheres
onde somem se não todos os problemas do mundo
ao menos os de um homem
.
. Sair do interior da mãe, crescer, se desenvolver e tentar penetrar outras fêmeas: esse é o ciclo do ser humano masculino. A melhor coisa que um homem pode fazer é estar dentro de uma mulher. Amá-la e ter filhos talvez seja a única maneira de compensar o mal causado pela sua existência.
. Todo ser precisa destruir ou transformar algo para ser Vivo, mas a nossa espécie anda exagerando. Cônscios de nossas limitações, sabemos que a mudança leva tempo - algo cada vez mais raro - e o melhor a fazer é passar às gerações posteriores ensinamentos para uma coexistência melhor. Tudo parte da fluência da Vida, essa entidade superior que pôs um micro-chip em cada um de nós, fazendo com que nos atraiamos ou não uns pelos outros. Quando o parafuso certo encontra a porca certa, uma engrenagem funciona corretamente na máquina da Vida.
. Mas demora pra acontecer. Às vezes, é um ritual: nos conhecemos, saimos, transamos, namoramos, brigamos, depois voltamos, casamos, tentamos enlouquecer uns aos outros, e, caso não consigamos, nos considerando preparados o suficiente para cuidar de uma nova vida, damos umas fodas bem-feitas e nasce um bacurizinho pra gente cuidar. Ou não, podemos fazer como o casal de mendigos que certa noite se enrolou num cobertor de lã e transou sob a luz da lua no jardim do quartel, no Largo dos Aflitos, detrás da igrejinha: simplesmente fodemos e nove meses depois a porra nasce. Esta cena dos mendigos foi uma das coisas mais bonitas que eu já vi na minha Vida.
. E tem quase nove meses que não toco nesse blog. Precisamente, oito. Não sei se por falta de tempo ou vontade. Minha vida mudou muito durante esta ausência, mas posso dizer que continuo o mesmo. Exceto por ter perdido o hábito de escrever no blog, retomado nesse exato instante como um regresso ao velho EU, aquele que só ia à faculdade tocar um violão na varandinha, passava tardes de besteira, comendo e fumando com meu amor, ou jogando videogame com a galera da rua. E não tinha nada mais importante pra fazer além disso.
. É claro que não faço mais nada disso, quem me conhece sabe que não tenho tempo. Trabalho o dia todo e venho no ônibus pensando no que vou escrever antes de dormir, quando chegar da academia. Substituí o cigarro pela malhação e a saúde agradece. Mas continuo com o velho vício da escrita, que, infelizmente, é filha do ócio e prima do cigarro, embora não possa mais conviver com o restante da família. Escrevo tarde da noite, depois que todos vão dormir, como quem fuma um cigarro escondido no escuro da varanda. Ou faz amor no Largo dos Aflitos, sob a luz da lua e um cobertor maltrapilho.

terça-feira, 25 de março de 2008

meu escritor preferido


. os escritores de quem eu mais gostava eram Jorge Amado, João Ubaldo, Carlos Drummond e Guimarães Rosa. literatura estrangeira? pequenas doses. tirando os porres de vodka(Dostoievisky e Gork), agora não me lembro de mais nada. isso tudo até ler Bukowsky. aí sim, o meu gosto pelas letras evoluiu. hoje, meu autor preferido sou eu mesmo.

sacizeiro

sou um homem consciente de minhas fraquezas


um homem que levanta o próprio peso no supino


e desaba, ofegante, fodido por uma buceta





sou a alma que caminha, sozinha,


à meia-noite vazia da cidade


e deseja evaporar


sofrer uma mudança metafísica de estado


subir e desaparecer no ar


como a fumaça do meu cigarro





um sacizeiro me pede um real


desespero e vício encarnados


lhe dou três carltons


e ele me abraça como a um velho amigo


o sacizeiro vai embora feliz, e eu, vivo


após mais um encontro com a morte e a poesia





nunca encontrará o real prazer


quem vacilar diante da vida


viver é chupar a buceta de uma puta recém-fodida





. poema inspirado pela leitura de "O amor é um cão dos diabos", de Charles Bukowsky. observação: sacizeiro é uma gíria utilizada em Salvador para designar os fumadores de crack e remete ao saci, personagem folclórico que aparece sempre retratado com um cachimbo à boca.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Vícios




. fumando. pra caralho. só hoje, uma carteira de marlboro heavy. sinto um muco escorrer pela minha garganta até os pulmões, enquanto o coração lateja no peito suado. uma escarrada no chão revela uma gosma esverdeada e consistente. deixa aí, depois eu piso e some. trago novamente o cigarro à boca e os pulmões irritados se debatem, tentando fugir de dentro de mim. eles deviam saber que é inútil. não há como escapar da fumaça que obumbra o interior do meu quarto, se espalha pelas ruas da cidade e acinzenta a atmosfera azul do planeta.


. tudo tem me cansado. acordar, levantar, sentir fome, andar até o mercado, voltar carregando as compras e subir três andares de escada me arrastando. até bater punheta ta me cansando. foder? talvez me matasse. seria uma morte melhor do que mereço.


. mais alguns anos nesse ritmo e enfarto ou fico broxa antes dos quarenta. na pior das hipóteses, tenho uma necrose, quiçá um câncer de pulmão ou laringe – ao menos poderei ter a minha foto estampada no verso das carteiras de cigarro. pela primeira vez na vida, ainda que no final, eu apareceria em alguma lugar.







. o celular bipa me avisando que já são cinco da manhã. acendo outro cigarro pra afastar a modorra. a nicotina faz meus neurotransmissores receberem altas doses de endorfina e dopamina, o que aumenta minha concentração e combate o sono. em contrapartida, o mal causado pelo fumo vem me fazendo dormir mais do que o normal. seis horas de sono já foram suficientes para eu me recompor, só que atualmente passo metade do dia dormindo e ainda acordo cansado. é como se meu corpo precisasse de mais tempo de repouso para que as células se multipliquem e me recuperem dos danos causados pelo tabaco. queria poder não dormir. nunca mais. existe desperdício de tempo maior do que dormir?







. escrever é bem melhor que dormir. escrever, escrever como sangrar. como fazia henry charles bukowsky. alias, não pense que estou tão sonolento que me esqueci das maiúsculas – é apenas uma tentativa de me aproximar dele. acho que ele escrevia assim porque na máquina de escrever deve ser foda ficar colocando caixa alta toda hora, após cada ponto. ainda mais para quem adora frases curtas. ou, quem sabe, ele só utilizava letras minúsculas pra diminuir ainda mais os seus escritos? não importa. sou ainda mais idiota do que o velho hank, tentando copiar descaradamente o seu estilo. pra me sacanear, o word vai substituindo todas as iniciais das frases por maiúsculas, me dando o maior trabalho pra fazer um texto merda desses. hoje em dia, até fazer uma merda bem feita é foda.

. e cigarro dá mesmo vontade de cagar. sentado no trono da iimbecilidade, mando o resto da merda pra fora, dispenso a ponta e dou descarga. depois me bato comigo no espelho. minha cara já viveu dias melhores. olhos fundos, cabelos sujos, a cara sebosa. a barba por fazer esconde cravos de cabeça preta, bolas vermelhas inchadas e crateras lunares. espremo uma espinha até estourar abruptamente e sujar o espelho de pus amarelo-ralo. dói bastante, mas eu gosto. escolho um cravo maduro perto da orelha e só me contento quando sinto que meu sangue ainda pulsa, escorre pelo queixo e coagula misturado com a sujeira das unhas. tenho que expulsar esses invasores da minha pele, ainda que fique marcado eternamente pelas cicatrizes. é como uma necessidade, um vício, comparado apenas à minha obsessão pela escrita. ou pelo cigarro. um dia, hei de escrever um livro. no fundo, haverá uma foto desse cara no espelho, ainda mais decrépito. acima, letras garrafais: “ele é uma vítima da própria escrita. escrever é um vício e pode levar à morte.”





fotos de Charles Bukowsky retiradas de http://www.spectroeditora.com.br/autores/bukowski/bukfoto.php

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A Pró


. Estava eu pronta pra almoçar, quando me aparecem dois meninos. De mochila, calça jeans e casaco escondendo a farda azul-bebê. Cheirando a leite.
: – Quanto é a massagem?
. Eu nem estava instigada pra tirar aqueles cabaços assim, na hora do almoço. Horário de almoço é sagrado. Mas fiquei curiosa pra saber quanto aquilo poderia me render.
: – Cinquenta.
: – É... E o serviço completo?
: – Como, serviço completo?! Não tem nada disso aqui, não, menino!
: – Ah, colé... Eu já tenho quase dezoito – e me mostrou o documento. Não resisti.
. Matei duzentos paus. Sem muito esforço. Na outra semana, já vieram com mais três colegas. Esses estavam meio tímidos, nervosos. Mas também foram embora sem camisa, suados, sorrindo. Como verdadeiros homenzinhos!
. Tinha dias que ficavam quase dez meninos sentados na amendoeira em frente ao meu prédio, ali, de bobeira, conversando, alguns mais calmos, outros impacientes, fumando... Eu amava quando traziam vinho e cigarros para mim, quanto mais doida eu ficava, mais gostoso eu fodia.
. Quem eu mais gostava era um chamado Tiago. Tinha uns dezesseis anos, mas assim todo desenvolvido. Fortão, as costas largas e uma piroca tão grossa que mal cabia em minhas mãos. Se ele soubesse que eu pagaria pra chupar uma daquelas...
. Tinha também o Rô, uma gracinha, os olhos verde-mar, sempre trazia chocolate pra mim! É claro que algumas vezes não rolava química, ou eu estava muito cansada. Aí tinha de ser mais profissional, mesmo. De qualquer jeito, era legal ensinar a eles onde colocar a mão, como meter forte, ritmado e gostoso, como se chupa direitinho uma buceta, e outras técnicas básicas, que todo homem devem conhecer pra satisfazer uma mulher. Preparei aqueles meninos para a vida mais do que qualquer professora!
. Poderia dar merda a qualquer momento: eu sabia. Deviam ter no máximo quinze, dezesseis anos, eram tão novinhos! Mas fazer o quê? Só aluguel e condomínio desse apêzinho vagá na Pituba são quase mil reais! Eu preciso de pelo menos uns três mil por mês para me manter, não é sempre que posso me dar o luxo de escolher cliente, ia deixar de trepar com os meninos porquê?
. Sabe, eu costumo cobrar de acordo com o cliente. Quando vem me pegar de carro importado, é de trezentos pra cima. Quinhentos se for velho e der trabalho pra levantar a bengala. Mas para os meninos, não cobro mais de oitenta, cem. Primeiro porque consigo derrubá-los mais rápido, depois porque é mais gostoso e divertido comer três, quatro guris numa tarde do que arriscar a sorte e sair com um desconhecido que te liga numa noite qualquer. Vai que é um maníaco ou um desses tipos sebosos que pára o carro à noite na Manoel Dias! Prefiro meus garotos.
. Um dia batem na porta dois caras. Camisa de botão, jeans, lupa... Polícia Civil. Foram logo me chamando de puta, não neguei porque não tenho vergonha de ser. Aí, disseram que o diretor da escola deu uma queixa contra mim, me acusando de abuso de menores. Botaram a maior pressão: você vai ser presa, nós temos provas e testemunhas, não tem como você escapar... Mas eu não me desesperei. Enquanto eles ficavam olhando minha bunda, eu mostrei que tinha peito.
: – Olha bem pra mim! Olha! Tem gente pagando quinhentos conto pra passar a noite comigo, cê acha que eu ia perder tempo roubando mesada de guri?!
. Só que os caras eram durões. Com eles, não tinha conversa certa. Resultado: para amolecê-los, tive que pagar três paus e ainda chupar dois!



Mais um conto da série "Lapsos no Papel", iniciada com o conto"Red Martini". Aproveito para divulgar meu outro blog, dedicado a poemas de inspirações eróticas e concretistas:



domingo, 6 de janeiro de 2008

SINAIS

Foto: Marta Erhardt, A TARDE On Line, www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=758187


Sinais

. Mais 60. Duas da tarde, o sol castigando e Bituca ainda com um copo de leite na barriga. Em casa devia rolar um feijãozinho com arroz e talvez frango, só que até de noite precisava comer alguma coisa. Saco vazio não fica de pé.

. 50. Hoje o movimento tava fraco. Só umas 10 moedas. Quem sabe dá pra pegar um rango em Dona Melinha – a véia é bróder e quando falta alguns centavos libera se ajudar nos pratos – mas ele queria mesmo era juntar um trocado e passar depois no fliper.
. 40. Bituca flagrou Totonho distraído, treinando novas jogadas. O miserável é verme, sabe mandar o pau de borracha girando pra cima na facilidade, depois dá uma volta no corpo, pega e ainda sai fazendo um monte de arte: passa debaixo da perna, equilibra na testa, no queixo... Foi Totonho quem ensinou a Bituca a manha de fazer malabarismo girando um pau coberto por tira de borracha com duas varetas. Só que a idéia de fazerem os dois de vez, com o Totonho em pé nos seus ombros, fora dele. 30.

: - Mais tarde se sobrar dinheiro a gente joga. Cê tá me devendo 3 ficha...
: - Se a gente jogar aquele novo de luta você é que vai ficar me devendo dessa vez. Eu treinei que nem a disgrama esse fim de semana!

. 20. Os dígitos verde-luminosos da sinaleira demoravam a mudar. Bituca não entendia: se os números da sinaleira são iguais àqueles que aparecem no videogame, porquê nos jogos eles passam beeem mais rápido do que nessa merda de sinal?

. 10 segundos. Ele empunhou os malabares e calçou o chinelo, se preparando para adentrar no asfalto quente. Laranja. Olhou o boneco andante do sinal de pedestres, que piscava verde indicando à massa a iminente travessia. Assim que o semáforo dos veículos tingiu-se de vermelho, Bituca se picou com Totonho na frente do povaréu que cruzava a faixa. Pretendiam aproveitar ao máximo o breve coágulo no trânsito soteropolitano.

. Primeiro, o momento crucial da apresentação: Totonho pongou em cima de Bituca, que se ergueu ao perceber amigo já equilibrado, e começaram a girar os paus de borracha cada um prum lado diferente. Depois Bituca jogou o emborrachado girando pro alto no instante em que Totonho largou o dele, cada um na manha certa pro outro pegar, trocando no ar os paus de borracha. Até mesmo os transeuntes se encantavam com a manobra. Alguns, após atravessar a pista, ainda permaneciam parados na calçada para assistir todo o show. Espetáculo com precisão cronométrica de 20 segundos. Tinha que sobrar 15 pra cobrar o cachê.

. Bituca perdeu 2 segundos analisando os carros. Um prata equipadão cuns playbozinhos ouvindo pagodão nas altura... Um jipão preto, fumêzão levantado e um casal de barão dentro... Um Chevette velho guiado por um coroa mais acabado ainda; uma moça bonita num Kazinho vermelho...

: - E aí men, não tem um trocadinho aí pr’eu comprar uma merendinha, não?

: - Porra, cê botou pra fuder, pivete! Se eu tivesse um circo te contratava! – e perguntou se alguém da galera não tinha umas moedas. As luzinhas da sinaleira dançando em ritmo acelerante enquanto eles reviravam seus bolsos. Ao menos entregaram a Bituca um volumoso punhado. Ainda deu tempo de chegar no coroa, mas ele falou que tava quebrado. Bituca queixou um cigarro.
: - Você é novo demais pra tá fumando... Deixe disso, menino, que cigarro na sua idade é a pior coisa que tem!
: - E na sua idade, então, é caixão-e-vela!
. Que onda! Ele já ia fazer 12, trabalhava desde os 8 e ajudava em casa mais que muitas pessoas maiores. O viado velho soltava mais fumaça que a descarga do Chevette e preferiu jogar a porra do cigarro fora ao invés de lhe dar a segunda.

. O sinal abriu outra vez. Sentaram no meio-fio para um balanço financeiro. Apesar de serem tudo de cinco e dez, juntas as moedas dos playboys renderam 80 centavos a Bituca. Totonho só conseguira 25 de um carro preto com um cara dentro e mais nada. Também, queria o quê? Pára na janela com a mão estendida sem nem dar um pio; termina passando de carro em carro sem conseguir nada. A maioria fecha o vidro quando vê um moleque sujo e esfarrapado chegando com uns pedaço de pau na mão. Tem de escolher as pessoas certas, saber se fazer coitadinho... Aí eles ficam com pena, acham que é criança carente e dão dinheiro.

. Os ganhos na sinaleira de Ondina estavam minguando. No ano passado, quando começaram o número com os malabares, a idéia lhes apareceu como solução para multiplicar a esmola. Só que agora haviam garotos espalhados por diversos cruzamentos da cidade fazendo o mesmo. Foda também era segurar o ponto privilegiado na orla, entrocamento de duas avenidas disputado a facada no mundo esmolérico. Vendedor de água mineral, flanelinha, aleijado, dava de tudo na sinaleira. Mas malabares só podiam ser eles – se entrasse mais unzinho que fosse prejudicava o lucro. Mantinham a exclusividade a custo de uma eficiente política de relações, que incluía favores como às vezes olhar o neném da pedinte que fica na escadaria do banco, encher baldes d’água pros flanelinhas, se coligar aos barraqueiros, aos garis, jornaleiros... Eram conhecidos por todo mundo em volta da sinaleira, até mesmo pelos PMs do módulo. Assim, caso ocorre feito a vez que uns pivetes da cidade baixa tentaram tirá-los do pico e tiveram que sair na mão contra quatro, tinham certeza de serem defendidos.

. Bituca encarou novamente o homenzinho verde que caminhava no semáforo. Piscava lembrando que em poucos segundos recomeçaria o expediente. Vá. Ande. Siga em frente. O bonequinho podia falar com ele?

: - Se eu ficar com mais dinheiro que você, deixo pra lá aquelas 3 fichas e ainda boto 2 se você jogar o do futebol comigo... – andou até o acostamento e pegou a ponta de cigarro jogada pelo coroa. Quase apagada.
: - Aí não tem mais nada, Bituca. Larga isso fora – Totonho fez pouco caso da insistência do companheiro, que encarou o descrédito como desafio.
. Mas Bituca soprou, puxou e tragou a baga até reavivar a chama. Se aplicou e só dispensou no filtro. Afinal, não foi à toa que ganhara aquele apelido.