quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Minha Princesa

Minha Princesa

. Lembro claramente da primeira vez em que a vi. Era sexta-feira, antevéspera de natal, o shopping lotado de gente à procura dos últimos presentes.
Ela estava numa loja de departamentos, perdida entre a seção de brinquedos e os produtos de beleza. Quando parei os olhos naquele corpinho - assim meio magrinha, mas dotada de belas curvas e uma traseira bem feita, empinadinha, do jeito que eu gosto – decidi que iria possuí-la a qualquer custo!
. E olha que foi mais difícil do que eu pensava. Mas depois de muita conversa e insistência, ela terminou entrando na minha. No início, rolava apenas umas voltinhas pela praça, nós dois, lado a lado. Enquanto eu a conduzia pelo braço, os caras mais velhos me comediavam:
. - Olha só! O guri é mó zé-ruela! Não sabe nem o que fazer com o material que tem!
. - Se ela fosse minha, ia sentir o peso de um homem de verdade!
. Pouco me importavam os comentários. Sabia que qualquer um faria de tudo para estar no meu lugar. E não adiantava, por mais que eles falassem, ela era só minha! Nunca aceitaria dividi-la com ninguém.
. Precisei de boas doses de respeito, controle e equilíbrio para criarmos alguma intimidade. Mas não demorou muito e aprendi a lidar com ela. Até apelido coloquei, Minha Princesa, imagine só!
. Quando me senti seguro o bastante, não vacilei, e finalmente consegui o que tanto queria. Levei-a para um matagal na rua de trás, um lugar isolado e coberto por uma graminha rasteira e macia, onde pude ficar à vontade com Minha Princesa.
. Montei em cima dela e procurei uma posição confortável. A princípio, a inexperiência me fez agir meio bruscamente. Cheguei a pensar que não conseguiria ficar de pé. Mas não demorou e fui pegando a manha. Comecei devagarinho, até achar um ritmo legal, me movimentando constantemente para não tombar. Que delícia! Era a primeira vez que experimentava aquela sensação, uma mistura de liberdade e prazer. Acelerei, fui mais rápido, rápidão, rapidíssimo, e... Me senti leve como se estivesse voando! Foi inesquecível!
. Depois disto, ainda vivemos bons momentos juntos. Até uma armadilha do destino nos separar tragicamente. Estava toda a galera passeando pela rua de cima, numa boa, quando alguém inventou de descer a ladeira do Quebra-Pescoço. Era o tipo de desafio que qualquer moleque deveria encarar para ser minimamente respeitado lá na vizinhança.
. - Quem chegar primeiro na fonte da praça, ganha!
. - Ganha o quê? A gente vai arriscar se estrepar todo por nada?
. - Quem ganhar essa corrida vai poder andar nas bikes de quem quiser por uma semana!
. - Ih, ta com medo, fraco?
. - Porra nenhuma, chego primeiro que você!
. - Então, vamo nessa! Um, dois, três, e... Já!
. Agora eles veriam quem era o otário! Em poucas pedaladas, eu e Minha Princesa atingimos tanta velocidade que já chegamos à descida do Quebra-Pescoço na liderança. Aproveitei o início mais plano da ladeira para utilizar a potência máxima das minhas pernas e chegar à descida embalado, o que nos deu alguma vantagem sobre o grupo. Disputávamos com cinco ou seis garotos, e apenas um deles, um grandalhão que não lembro o nome agora, permanecia na nossa cola.
. Pedalei mais rápido. O vento revirava minhas pálpebras e Minha Princesa corria a mil por hora, de um jeito que eu nunca havia imaginado. O grandão pedalava com força, mas tinha pernas longas demais para sua Bicicross e acabou ficando para trás.
. A vitória parecia ser apenas uma questão de tempo. Deixei Minha Princesa correr frouxa, me equilibrei e fizemos uma curva de raio perfeito, entrando na última reta avionados. Estrava prestes a acontecer: alem de livre acesso às melhores bikes da rua, teria o meu respeito, maculado por anos de gozações sofridas, totalmente restituído!
. De repente, comecei a notar um ruído: vvvvrrrRRR... Ainda cheguei a pensar que eram as correntes da Minha Princesa, rugindo em alta velocidade. Mas aquilo foi crescendo, crescendo... vvrrRRRRUUURURR... Até se transformar num barulho estrondoso!
. Um cheirinho inconfundível me trouxe à tona: só podia ser o caminhão de lixo! Se aproximava pela rua transversal e logo adentraria na Quebra-Pescoço, bloqueando toda a passagem. Tínhamos que parar de qualquer maneira!
. E justamente na hora em que mais precisei da Minha Princesa... Apertei os freios e nada aconteceu. Tentei de novo. Nada. Ela parecia não me obedecer. Fiquei desesperado!
. Ao ver o caminhão de lixo despontando no Quebra-Pescoço, me precipitei. Pulei fora da pista e caí rolando na calçada. Felizmente, numa parte coberta de mato. Minha Princesa não teve a mesma sorte. Foi esmagada pelo caminhão e reduzida a um monte de ferro retorcido. Ela ficou irreconhecível. Eu, humilhado.
. Talvez Minha Princesa tenha se desgastado demais durante as nossas aventuras. Apesar disso, eu nunca imaginaria que ela pudesse perder os freios assim, de repente, e logo num momento tão crucial, quando a nossa honra estava em jogo. Foi um golpe duro. Dentro de mim, me consolei numa certeza: apesar de não ter me consagrado o melhor ciclista do bairro, pelo menos nenhum babaca jamais desfilou com a Minha Princesa de role por aí.
. Mesmo assim, fiquei um bom tempo de luto. Nem passar pelas bandas do Quebra-Pescoço eu queria, porque já batia uma vontade de soluçar. Mas sabe como é jovem... Principalmente eu, que sempre fui um cara volúvel. Terminei superando o trauma.
. Há certas coisas que ao longo dos anos ficam cada vez melhores. Hoje, ando de carro e não sinto tanta saudade da época em que tinha de suar pra subir ladeira. No entanto, são lembranças que me acompanharão para sempre. Andar de bicicleta é aquele tipo de coisa que a gente só sabe quando começou, e nunca como vai acabar. Realmente, é o tipo de coisa que, uma vez aprendida, a gente não esquece jamais... Enfim, é dos melhores tipos de coisas da vida.
. Por isso, minha tristeza só durou até o meu aniversário, quando ganhei uma lambretinha que por muito tempo foi A Sensação entre as meninas lá da rua.

Pedro de Freitas Paula