quarta-feira, 13 de abril de 2011

Doce de Tamarindo




Não me deixa assim tão solto

Me abraça no seu corpo, vamos

Provar o fruto do pecado.

Delicioso doce amargo.


Nosso amor é tão gostoso

Tem sabor de azedinho

É pra chupar bem devagar

É doce de tamarindo


Se eu saio de repente

Tu esqueces que eu existo

Deixa outro pretendente

Sussurar ao seu ouvido


Vou mordendo pela polpa

Até chegar no caroço

Tirando sua roupa

Beijando sua boca

Lhe causando alvoroço


Nosso amor é tão gostoso

Tem sabor de azedinho

É pra chupar bem devagar

É doce de tamarindo



imagem: http://oficinafranciscodlafuenteguarany.blogspot.com/2010/08/tamarindeiro-as-margens-do-rio-corrente.html)


Textura cremosa, um toque adocicado e o azedinho que nos deixa com gostinho de quero mais: quem já provou doce de tamarindo sabe do que estou falando. Eu nunca havia pensado que um sabor tão ácido, adstringente, pudesse se tornar tão viciante, até conhecer essa fina iguaria, obtida pelo cozimento da polpa que reveste as sementinhas redondas encontradas dentro da vagem do tamarindeiro.

Árvore originária das savanas africanas e do sudeste asiático, em sua plenitude o tamarindus indica pode chegar aos 25 metros de altura, formando uma copa densa e ornamental sobre um tronco forte, resistente a pragas e cupins. Com suas flores de um amarelo-avermelhado selvagem, espalhadas em torno da vagem amarronzada de casca lenhosa, quebradiça, o tamarindeiro pode parecer um tanto agreste, mas é também uma planta que carregada de histórias e sensibilidade – suas folhas se fecham quando sentem frio.

O seu nome vem do latim tamarindus, que na verdade é uma adaptação do árabe tamr híndi (tâmara da Índia), prova de que seu sabor já rodou o mundo em forma de doces, bolos, sucos, licores e o que mais se puder inventar. No Sudeste Asiático, dizia-se que o tamarindeiro era morada de influências maléficas, sendo seu perfume, sua sombra e os objetos produzidos com seu tronco capazes de realizar proezas como dominar o mais temível dos inimigos. Aos amigos, pode-se oferecer a receita à qual me refiro; seria o seu néctar mais puro – tamarindo cozido em água e misturado com açúcar, resultando numa calda pastosa marrom de aspecto terroso e forte sabor agridoce.

Para se obter o máximo de prazer ao saboreá-lo, o doce deve ser tragado pelos lábios lentamente, num ritmo similar ao da cocada-puxa, e dissolvido pela língua com movimentos leves, de forma a espalhá-lo aos quatro cantos da boca, como tradicionalmente fazemos com o brigadeiro de panela – com alguma prática, estamos aptos para nos deliciar plenamente com essa explosão de sensações agridoces que invadem nosso paladar a cada colherada.

Certamente, seu sabor não é tão dócil quanto o de outros doces como banana, ambrosia ou ameixa, mas por quê o doce de tamarindo nos provoca tanto descontrole, seguidos de impulsos gulosos e salivação involuntária? É um mistério sem resposta, como o das paixões que volta e meia nos arrebatam de repente e nos fazem arder de febre, quando nós, mesmo sabendo que vamos sofrer, agimos como inconseqüentes e nos entregamos plenamente a um relacionamento fadado ao fracasso. Ou como as viroses pós-carnaval: todo mundo sabe que vai rolar, acha que “em mim não vai pegar”, curte pra caramba, e no final, quando a folia acaba, termina arrasado, mas satisfeito: “to f*, mas valeu a pena”. E o pior é que, geralmente, vale mesmo.

Por isso, aproveite o momento e chupe devagar o seu doce de tamarindo. Não deixá-lo solto vai evitar que algum pretendente invejoso venha sussurrar ao seu ouvido. Dance bastante, agarre o seu doce de jeito e siga o percurso: mordendo a polpa até chegar ao caroço, tirando a roupa e causando alvoroço (gostei de usar esse sinônimo inusitado para a excitação, e ainda encaixou bem na rima).

(fonte: http://bacalhaucombatata.blogspot.com/2009/11/frutas-por-onde-elas-andam.html)

O quarteto de rimas emparelhadas que abrem a canção podem ser classificadas como ricas em sua versificação, pois rimam palavras de classes gramaticais diferentes: solto (adjetivo) corpo (substantivo), pecado (substantivo) amargo (adjetivo). Também foi utilizado o recurso do encadeamento, quando a frase se inicia em um verso e termina no seguinte (Me abraça no seu corpo, vamos provar o fruto do pecado). Para terminar a estrofe, uma antítese “clássica”: delicioso doce-amargo.

O refrão e o ritmo remetem à malícia dos gêneros populares dançantes, como brega, arrocha, seresta e afins. “É pra chupar bem devagar É doce de tamarindo”: aproveitar o momento lentamente para prolongar o prazer (da dança, da degustação do doce ou do que mais você puder imaginar) é a idéia dessa metáfora.

No segundo quarteto, as rimas se tornam alternadas: “Se eu saio de repente (advérbio) Tu esqueces que eu existo (verbo) Deixa outro pretendente (substantivo) Sussurrar ao seu ouvido (substantivo)”, mas, justamente pela alternância, continuam ricas, entre advérbio substantivo e verbo substantivo.

Apesar de ser uma música popular, o refrão desta música não contém rima, e essa não foi uma decisão consciente. Apenas senti que a vocalização no final (o tradicional ô-ô-ô) e a simplicidade da idéia bastariam para atingir o efeito pretendido. A incorporação de vícios de linguagem, gírias e regionalismos dá o efeito de lingaguem “falada”, coloquial, muito presente nas músicas dedicadas massa. É importante que esses desvios da norma padrão se dêem de forma natural, encaixando suavemente na melodia e no contexto da letra, com humor e ironia, mas sem exagero, ou o que se obtém é um amontoado de gírias e clichês sem originalidade.

Enquanto as duas primeiras estrofes deixam sub-entendido que comer doce de tamarindo serve como metáfora para o desenrolar de certas paixões, as rimas alternadas da terceira estrofe escancaram a comparação: “Vou mordendo pela polpa Até chegar no caroço tirando sua roupa, beijando sua boca lhe causando alvoroço”.

A seqüência que percorre da polpa até o caroço descreve uma aproximação que começa mais suave, tirando a roupa, e vai até o mais intenso, causando alvoroço. Esse encerramento da canção, conotando uma aceleração na intensidade do toque, teve seu entendimento facilitado pelas rimas pobres entre substantivos (“polpa caroço roupa boca), que conduzem ao final a uma rima rica, com uma palavra mais inusitada (alvoroço). Esta seqüência evidencia a comparação: morder a polpa até chupar o caroço (na fruta), e tirar a roupa, beijar a boca, causar alvoroço (no ritual amoroso). A variação melódica com mi maior à sétima que ocorre nesta passagem e a inclusão de um verso a mais na métrica ressaltam a função da terceira estrofe de encerrar, dar um fechamento à idéia da música.

Mas, como muitas músicas que ouvimos por aí, Doce de Tamarindo não tem começo, meio e fim, e sim um refrão grudento ensanduichado por pensamentos pouco complexos e muito polivalentes. Simples como a receita do doce, mas capaz de provocar sensações intensas; se consumida em demasia, pode provocar enjôo e disritmia intestinal, mas, ainda assim, esta canção merece uma interpretação musicalmente bem mais sofisticada, digna do sabor requintado e selvagem do doce de tamarindo.