Árvore originária das savanas africanas e do sudeste asiático, em sua plenitude o tamarindus indica pode chegar aos 25 metros de altura, formando uma copa densa e ornamental sobre um tronco forte, resistente a pragas e cupins. Com suas flores de um amarelo-avermelhado selvagem, espalhadas em torno da vagem amarronzada de casca lenhosa, quebradiça, o tamarindeiro pode parecer um tanto agreste, mas é também uma planta que carregada de histórias e sensibilidade – suas folhas se fecham quando sentem frio.
O seu nome vem do latim tamarindus, que na verdade é uma adaptação do árabe tamr híndi (tâmara da Índia), prova de que seu sabor já rodou o mundo em forma de doces, bolos, sucos, licores e o que mais se puder inventar. No Sudeste Asiático, dizia-se que o tamarindeiro era morada de influências maléficas, sendo seu perfume, sua sombra e os objetos produzidos com seu tronco capazes de realizar proezas como dominar o mais temível dos inimigos. Aos amigos, pode-se oferecer a receita à qual me refiro; seria o seu néctar mais puro – tamarindo cozido em água e misturado com açúcar, resultando numa calda pastosa marrom de aspecto terroso e forte sabor agridoce.
Para se obter o máximo de prazer ao saboreá-lo, o doce deve ser tragado pelos lábios lentamente, num ritmo similar ao da cocada-puxa, e dissolvido pela língua com movimentos leves, de forma a espalhá-lo aos quatro cantos da boca, como tradicionalmente fazemos com o brigadeiro de panela – com alguma prática, estamos aptos para nos deliciar plenamente com essa explosão de sensações agridoces que invadem nosso paladar a cada colherada.
Certamente, seu sabor não é tão dócil quanto o de outros doces como banana, ambrosia ou ameixa, mas por quê o doce de tamarindo nos provoca tanto descontrole, seguidos de impulsos gulosos e salivação involuntária? É um mistério sem resposta, como o das paixões que volta e meia nos arrebatam de repente e nos fazem arder de febre, quando nós, mesmo sabendo que vamos sofrer, agimos como inconseqüentes e nos entregamos plenamente a um relacionamento fadado ao fracasso. Ou como as viroses pós-carnaval: todo mundo sabe que vai rolar, acha que “em mim não vai pegar”, curte pra caramba, e no final, quando a folia acaba, termina arrasado, mas satisfeito: “to f*, mas valeu a pena”. E o pior é que, geralmente, vale mesmo.
Por isso, aproveite o momento e chupe devagar o seu doce de tamarindo. Não deixá-lo solto vai evitar que algum pretendente invejoso venha sussurrar ao seu ouvido. Dance bastante, agarre o seu doce de jeito e siga o percurso: mordendo a polpa até chegar ao caroço, tirando a roupa e causando alvoroço (gostei de usar esse sinônimo inusitado para a excitação, e ainda encaixou bem na rima).
(fonte: http://bacalhaucombatata.blogspot.com/2009/11/frutas-por-onde-elas-andam.html)
O quarteto de rimas emparelhadas que abrem a canção podem ser classificadas como ricas em sua versificação, pois rimam palavras de classes gramaticais diferentes: solto (adjetivo) ∕ corpo (substantivo), pecado (substantivo) ∕ amargo (adjetivo). Também foi utilizado o recurso do encadeamento, quando a frase se inicia em um verso e termina no seguinte (Me abraça no seu corpo, vamos ∕ provar o fruto do pecado). Para terminar a estrofe, uma antítese “clássica”: delicioso doce-amargo.
O refrão e o ritmo remetem à malícia dos gêneros populares dançantes, como brega, arrocha, seresta e afins. “É pra chupar bem devagar ∕ É doce de tamarindo”: aproveitar o momento lentamente para prolongar o prazer (da dança, da degustação do doce ou do que mais você puder imaginar) é a idéia dessa metáfora.
No segundo quarteto, as rimas se tornam alternadas: “Se eu saio de repente (advérbio) ∕ Tu esqueces que eu existo (verbo) ∕ Deixa outro pretendente (substantivo) ∕ Sussurrar ao seu ouvido (substantivo)”, mas, justamente pela alternância, continuam ricas, entre advérbio ∕ substantivo e verbo ∕ substantivo.
Apesar de ser uma música popular, o refrão desta música não contém rima, e essa não foi uma decisão consciente. Apenas senti que a vocalização no final (o tradicional ô-ô-ô) e a simplicidade da idéia bastariam para atingir o efeito pretendido. A incorporação de vícios de linguagem, gírias e regionalismos dá o efeito de lingaguem “falada”, coloquial, muito presente nas músicas dedicadas massa. É importante que esses desvios da norma padrão se dêem de forma natural, encaixando suavemente na melodia e no contexto da letra, com humor e ironia, mas sem exagero, ou o que se obtém é um amontoado de gírias e clichês sem originalidade.
Enquanto as duas primeiras estrofes deixam sub-entendido que comer doce de tamarindo serve como metáfora para o desenrolar de certas paixões, as rimas alternadas da terceira estrofe escancaram a comparação: “Vou mordendo pela polpa ∕ Até chegar no caroço ∕ tirando sua roupa, beijando sua boca ∕ lhe causando alvoroço”.
A seqüência que percorre da polpa até o caroço descreve uma aproximação que começa mais suave, tirando a roupa, e vai até o mais intenso, causando alvoroço. Esse encerramento da canção, conotando uma aceleração na intensidade do toque, teve seu entendimento facilitado pelas rimas pobres entre substantivos (“polpa ∕ caroço ∕ roupa ∕ boca), que conduzem ao final a uma rima rica, com uma palavra mais inusitada (alvoroço). Esta seqüência evidencia a comparação: morder a polpa até chupar o caroço (na fruta), e tirar a roupa, beijar a boca, causar alvoroço (no ritual amoroso). A variação melódica com mi maior à sétima que ocorre nesta passagem e a inclusão de um verso a mais na métrica ressaltam a função da terceira estrofe de encerrar, dar um fechamento à idéia da música.
Mas, como muitas músicas que ouvimos por aí, Doce de Tamarindo não tem começo, meio e fim, e sim um refrão grudento ensanduichado por pensamentos pouco complexos e muito polivalentes. Simples como a receita do doce, mas capaz de provocar sensações intensas; se consumida em demasia, pode provocar enjôo e disritmia intestinal, mas, ainda assim, esta canção merece uma interpretação musicalmente bem mais sofisticada, digna do sabor requintado e selvagem do doce de tamarindo.